sábado, 26 de outubro de 2019

Alberto d'Assumpção


Na arte contemporânea é ainda bem evidente a influência recebida do movimento surrealista. Com efeito os surrealistas não só elaboraram uma estética revolucionária como também introduziram novas formas através das quais esperavam mudar a condição humana. Técnicas que curiosamente visavam atingir a coexistência do consciente e do inconsciente, provavelmente recolhidas nas filosofias do Oriente.
       Decifra-se, por isso, no começo do surrealismo, nomeadamente nos poemas e manifestos de André Breton, uma nostalgia pela «totalidade primordial»; o desejo de concretizar a coincidência dos opostos, a esperança de ser capaz de anular a história para começar de novo com a força e a pureza originais. 
       Com efeito, os movimentos artísticos modernos procuram a redução das formas a estados larvares, germinais e elementares na esperança de recriar «mundos novos», i.e., abolir a história da arte e reintegrar o momento auroral em que o homem viu o mundo «pela primeira vez». 
       Isto vem a propósito da tentativa de explicação da mensagem secreta de certas obras, onde se vislumbra um padrão de iniciação quer na literatura quer na pintura relacionado com um universo imaginário. Poderia estabelecer-se uma aproximação semelhante entre a função da iniciação e a análise fenomenológica que pretende suprimir a experiência «profana», quer dizer, aquilo a que Husserl chamava a «atitude natural» do homem que corresponde, nas culturas tradicionais, ao estágio «profano» pré-iniciático. Vivência que na linha de Jorge Luís Borges contraria a «atitude natural», por constituir obstáculo ao «mundo sagrado» onde se desvela a realidade do mundo, que seria a chave para a compreensão do homem ocidental moderno.
       O desejo de decifrar aqueles cenários na literatura, nas artes plásticas e no cinema revela não só uma reavaliação da iniciação como processo de regeneração e transformação espirituais, mas também a nostalgia de uma experiência primordial. Daí a forte atração pelas obras literárias e artísticas com uma estrutura iniciática. 
       O materialismo histórico e a psicologia da profundidade, ambas na linha de um positivismo racionalista autossuficiente, protagonizaram, por sua vez, uma pretensiosa «desmistificação»; quando se procurava descobrir a significação verdadeira ou original – de um comportamento, uma ação ou uma criação cultural. Este processo de «desmistificação» ao contrário conduziu negativamente o pensamento ocidental, através de linguagens profanas e historicistas do conjuntural, sem saída e redutoras, ao discurso do pensamento único puritano e determinista. 
       Aqui se descobre a dialética entre materialismo e humanismo que enviesa o conhecimento, quando na sua dominância naturalista a comunidade científica se distancia de uma visão do homem como ser integral. 
       Num mundo dessacralizado como o nosso, onde se desvaloriza a espiritualidade, as consequências nas artes são evidentes, ficando os elementos «sagrados» aparentes ou ocultos na sua expressão plástica, embora presentes e ativos. Isto por que as experiências imaginárias fazem parte do ser humano total, não sendo menos importantes que as experiências do quotidiano.

       É para este desafio que nos convocam as obras de Alberto D’Assumpção.

       Alberto D’Assumpção importa dizê-lo, é filho do enigmático pintor Manuel D’Assumpção, percursor da corrente surrealista em Portugal e referência incontornável da mesma. Partindo do Expressionismo Arquetípico que pressupõe um autoconhecimento, uma construção interior baseada no mito, na alegoria e no simbolismo utilizadas por Alberto D’Assumpção, aí estão a circunferência, a esfera, o esquadro e o compasso, entre outras formas. 
       Para ele a Luz e o Espaço realizam-se em Harmonia. Da harmonia celeste à harmonia terrena, porém a passagem é sempre estreita. Por detrás das formas e dos símbolos na abertura subtil de uma porta ilumina-se um caminho.
       Não se veem labirintos, tudo é claro para quem Vê. A Ética em que se funda a sua construção interior não lho permite. 
       O movimento é constante, de planos que se projetam e de formas em rotação ou translação, nessa massa imensa de um Universo em expansão, síncrono, numa conjunção musical e mística. 
       Geómetra da pintura revela-se no lado lúdico da sua cor uma característica singular da sua expressão plástica, nela implicando o que sente com a intensidade do que nos pretende transmitir.
       Pintor Esotérico para ele a arte é, sobretudo uma maneira de comunicar com o Invisível, de analisar as suas correspondências secretas de uma forma mágica, diria mesmo iniciática, de criar entre o Indivíduo e o Cosmos um canal de comunicação, ou uma ponte e por ele(a) um movimento incessante de enriquecimento comum.
       Claro está finda a comunicação fica um quadro, um pedaço de tela coberto de cores, uma obra plástica única. 
       Se quisermos apreender o seu sentido profundo, teremos de abrir bem os olhos para Ver para além dela a Luz que a ilumina e as formas que a modulam ou as personagens ocultas que a povoam. 
       Ao analisarmos, porém, o aspeto propriamente plástico da sua obra o que se observa de imediato é o rigor, a medida e a minúcia que lhe é inerente. Por que motivo dir-se-á um Universo tão ordenado, num espaço tão bem repartido. 
       Pura Arte Real que se exercita na arquitetura secreta, para além das aparências enganadoras do Visível, numa rigorosa geometria só visível para os que detêm a chave do enigma. 
       Na passagem à mestria, o Mestre perfeito passa do esquadro ao compasso, sendo que este se vai ampliando, na medida justa e perfeita, para não mais condicionar a razão e o pensamento liberto. 
       Do que venho dizendo fácil será inferir que para Alberto D’Assumpção o acto de pintar é fundamental, de um valor sagrado, litúrgico mesmo. Celebrar o rito na sua cadência simbólica é mister de muito poucos. De iniciados dir-se-á. Dos autênticos acrescento eu. 
       É que quem procura nem sempre encontra. Tem de investigar, ler, recortar, recolher, estar atento e afinal pintar depois de Ver. Ilumina-se-lhe, então, a Esperança de descobrir o ritmo secreto do Universo e da Vida, que já recolhêramos em Zurara quando confere entre outras, uma dimensão cósmica aos Descobrimentos, que nem sempre é enfatizada, embora seja claramente manifesta.
No artista, do Uno ao Múltiplo regressa-se ao Uno, à Luz que se havia precipitado na cor, as formas são na verdade apenas um simulacro da realidade.

                                                                                                            Amadeu Basto de Lima

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